sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Cancro



Foi há dias. Estava sentada na cadeira, de olhos postos no ecrã do computador, frustrada porque não conseguia passar aquele nível chato do jogo do facebook. Pelo canto do olho, conseguia ver os acordes das músicas que havia praticado durante a tarde; interrogava-me se estaria à altura do ensaio daquela noite. A minha mente foi divagando: pensei no meu namorado e naquela manhã, pensei no início das aulas, pensei no fim-de-semana, enfim. Absorvida no mundano.


Até que vim a saber isto: mais uma pessoa que conheço foi diagnosticada com um tumor. Reagi com perplexidade, expressei o meu apoio a olhos raiados e a lacrimejar, abracei. Sozinha outra vez, apoiei os cotovelos na secretária e deixei-me estar por minutos incontáveis. O ecrã do computador ficou negro. Comecei a fazer as minhas contas: "quantas pessoas conheço cujos familiares têm cancro ou já morreram graças à doença...?" Reformulei: "quantas pessoas conheço cujos familiares NÃO têm cancro nem morreram graças à doença?" ... E cheguei à arrepiante conclusão de que esses indivíduos se contam pelos dedos das mãos.
Pensei em amigos próximos (e em pessoas que já foram amigos próximos) e nos seus familiares. Pensei naquela figura que todos os Natais ocupava sempre aquele lugar determinante à mesa, na antiga casa dos meus tios; pensei no meu avô, cuja vida lhe vai sendo sugada dia após dia pelo tumor cerebral; pensei em três das colegas de trabalho da minha mãe, sobreviventes de cancro da mama; pensei em quem vi sofrer pela morte de próximos graças ao cancro; pensei em quem vive sem saber que o tem; enfim... pensei. 


"Em Portugal, e tal como acontece em todo o Mundo, a incidência do cancro está a aumentar, estimando-se que cerca de 25 mil pessoas morram todos os anos desta doença no nosso país" (Liga Portuguesa Contra o Cancro).

Pensei de imediato: "doença do século". Tal como era a peste negra séculos atrás - ou, mais recentemente, a tuberculose - também o cancro se afirma na elevada taxa de mortalidade. No sofrimento. Nos efeitos secundários do tratamento.
Pensei depois: "e... e prevenção? como saber o que causa?"
"Globalmente, os factores de risco mais comuns, para o cancro, são apresentados em seguida:

  • Envelhecimento.
  • Tabaco.
  • Luz solar.
  • Radiação ionizante.
  • Determinados químicos e outras substâncias.
  • Alguns vírus e bactérias.
  • Determinadas hormonas.
  • Álcool.
  • Dieta pobre, falta de actividade física ou excesso de peso.


Muitos destes factores de risco podem ser evitados. Outros, como por exemplo a história familiar, não podem." - Liga Portuguesa Contra o Cancro



Não esqueçamos de que estamos diariamente sujeitos a muitos dos factores de risco. Não caminhamos em ambientes repletos de substâncias poluentes (como o monóxido de carbono emitido de cada vez que conduzimos)? Não levamos o telemóvel no bolso (radiações)? Não corremos o risco de, num local público, contrair algum vírus ou bactéria? E que fazemos contra isso? 


Fechei os olhos e respirei fundo, relembrando como foi quando o meu avô consultou um médico no Brasil que descobriu qualquer coisa anómala no seu cérebro e o aconselhou a voltar para Portugal; lembrei-me do berro de agonia da minha mãe - que ouvi da cozinha, enquanto acabava de fazer o arroz -, quando a minha avó lhe ligou e lhe disse o resultado dos exames. 
É o choque. Como é que alguém tão activo, sempre a resmungar, perfeccionista, viajado, alguém que tem sempre algo a fazer ou a dizer, como o meu avô, pode, de um momento para o outro, esquecer-se do caminho para casa? Esquecer-se do nome de uma das netas? Esquecer-se das palavras a usar? 
Cancro manhoso, apareces sempre onde menos se espera...
Depois da operação, vieram os tremores, a dificuldade em falar, as lágrimas de emoção. Os amigos estavam longe, parte da família a viver a 300km de distância e um filho do outro lado do Atlântico. 
Veio mais quimioterapia e radioterapia. A confusão, a dificuldade em andar, a perda de peso, a dependência frustrante; a falta de vontade de sair de casa; dormir para escapar a tudo. E, ainda há bem pouco tempo, a resignação àquilo que eu sei bem cá dentro que lhe aguarda.
A minha avó?... Sempre perfeccionista, "mandona", com algo sempre a dizer (nem que seja para criticar!)... Desesperada, farta, sem saber o que fazer; sem escape, praticamente sozinha. Tem agora um trabalho a tempo inteiro, sem direito a folga. 
(In)Felizmente, estou a 300km de distância, sempre estive; (in)felizmente, a ligação que tenho com estes meus avós não é tão forte como eu gostaria que fosse; (in)felizmente, não estou lá todos os dias a assistir àquele decair lento, àquele consumir de paciência, àquela... tristeza; mas... dói. 
É estranho falar ao telefone com o meu avô, escutá-lo a procurar as palavras durante minutos e minutos. É estranho ouvi-lo a resmungar sempre a mesma coisa com a minha avó e a minha mãe, esgotadas de tanto lhe explicarem algo extremamente simples que ele não entende. 
Ninguém faria prever algo assim... mas é assim mesmo, certo?
Cancro manhoso...

Sei de quem tem de estar sob vigilância graças ao cancro da mama, mas que está numa lista de espera para  uma consulta da especialidade num hospital aqui perto. Essa pessoa tem uma filha e um ex-marido com quem não a quer deixar. É medo, muito medo, e revolta porque a consulta, os exames, os resultados e consequentemente o tratamento podem não vir a tempo de evitar o pior...
Onde está a urgência em salvar vidas?
Ah, e onde está o apoio psicológico a estas pessoas e aos seus familiares, tão importante quanto o apoio médico e físico?!

Chovem notícias: "olha, sabes o senhor X, do talho? Adivinha: a mãe está com cancro nos ovários"; "ei, lembras-te da senhora Y, novinha, aquela que tinha os dois filhos no infantário? morreu de cancro há pouco tempo"; "O meu pai tem um tumor no estômago e não sei se ele vai sobreviver, e agora?"; "o meu pai tem um tumor na cabeça"; "a minha tia morreu de cancro". 
E a lista continua, e continua, e continua... Vai aumentando a intervalos de tempo cada vez mais curtos. Parece um vírus que avança a um ritmo galopante e não consigo expressar o quanto isso me assusta... 
Penso na minha mãe e no historial de família dela; penso no meu irmão, no seu excesso de peso e nos problemas que daí podem resultar; penso no meu namorado; penso nos meus primos - em todos eles; penso nos meus outros avós, aqui tão pertinho de mim;...
Penso e repenso e não me leva a lado nenhum. 

Chego à brilhante conclusão que não há nada que possa fazer... Sinto-me na corda bamba, atrapalhada com este raciocínio. 

Eram já horas de ir jantar (a minha mãe chamava já pela segunda ou terceira vez) e as minhas pernas não tinham a força suficiente para me levantar da cadeira... Como raios iria segurar a guitarra no ensaio?! Ou segurar a voz quando falasse ao jantar?

Cancro, horribilis cancro... Quando pensamos que só acontece aos outros...





Assombração - Parte I

 'Não quero falar do assunto' Apesar de toda a confiança Tudo regressa numa palavra Adeus à segurança Como uma assombração se volta ...