segunda-feira, 6 de junho de 2016

"Bebe vinho, que a vida é nada!"

Estava sentado junto ao jardim, a olhar para o reluzir do rio. Apoiei o queixo na mão direita e assim fiquei, perdido nos meus pensamentos; quedo e mudo. Bem, não diria mudo... Não chamaria mutismo à corrente de pensamentos que me rodeava e amarrava o cérebro a cada minuto (segundo?) que passava.
As gaivotas voavam em círculos, aproveitando o pôr-do-Sol e o ameno final de dia para praticarem o seu voo rasante aos turistas. Por momentos, invejei-as: podiam voar por onde quisessem, tinham uma vista privilegiada para o Douro (e para o Sol, que no seu horizonte se deitava) e... bem... podiam largar os seus pesados dejectos em cima de quem bem entendessem. Sorri - até me lembrar que as gaivotas comem peixe e, ocasionalmente, bicam os corpos de pombas mortas nas ruas. Estremeci, num esgar de nojo. Já mudei de ideias: não quero ser uma gaivota. Mas gostava de ser livre.
Julgo, num breve pensar de poeta, que a liberdade da alma pressupõe o largar de todas as regras e convenções - pessoais, familiares, sociais. A própria escrita envolve todo um conjunto de regras (letras e pontuações) que nem sempre facilitam a expressão (como colocar em palavras o que vi ou o que sinto?!), e está sujeita aos sistemas de interpretação alheios... E se eu me pudesse libertar dessas grilhetas? Abandonar regras de escrita e pontuação, leis, e, enfim, ver o pôr-do-Sol lá do alto, como uma gaivota?
Bem: a liberdade traz consigo o constrangimento... Não, não é a vergonha de quebrar normas sociais; refiro-me a impedimentos, barreiras, de toda a ordem. Muralhas que se erguem bem altas, e que parecem aumentar de tamanho à medida que também cresço. Ao fitar o rio Douro, no seu curso interminável da nascente à foz, apercebo-me de que apenas a morte nos libertará destes impedimentos. Mas eu não estou preparado para morrer, pensei, em agonia. Com que olhos observarei o pôr-do-Sol? Como sentirei a brisa suave de um final de tarde? Suspiro. De facto não se pode ter tudo.
Com que então, a liberdade anda de mãos dadas com a morte! Quem diria: todos desejam ser livres de tudo, mas ninguém quer enfrentar o nada e o vazio da morte. Mas também... Quem sou eu para dizer que a morte se enche de vazios cósmicos? De metafísica não percebo nada. Só percebo da carne humana. Dos seus medos, desejos, aspirações; das interacções recíprocas entre o passado, o presente e as ânsias do tempo, e o efeito que isso tem em cada um de nós. Entendo um pouco das relações humanas: de formas distorcidas de amor e violência, de escaladas de conflito, de famílias que não são mais do que estranhos a partilhar o mesmo lar. Consigo ainda saborear a angústia existencial e a tristeza da depressão - talvez porque as vivencio. Sim: talvez compreenda uma parte daquilo que o ser humano tem para oferecer.
Ser humano. Ser. Existir. Viver. Aquele limbo incerto entre o vazio e o nada - entre o infinito e a morte. Sim: não somos mais do que gaivotas que percorrem, atarantadas e barulhentas, o caminho entre a nascente e a foz do rio. Mas, como já disse: de metafísica não percebo nada. Sorrio; desvio o olhar para observar os turistas que se juntam para tirar fotografias ao rio e à ponte. Alguns olham para mim de soslaio: com certeza me julgam um jovem perdido - com a mochila pousada no chão, de olhar vazio e cigarro na mão. "Que juventude, esta de Portugal", hão de dizer aos seus conterrâneos, quando retornarem à Alemanha, França, Inglaterra, Conchichina, enfim.
Suspiro. Numa coisa todos aqueles totós de mapa na mão acertaram: sou perdido. Não, não estou perdido - isso significaria que sei de onde vim e para onde quero ir. Sou perdido: nasci sem me conhecer, cresci a tentar desvendar os mistérios do mundo social, e ainda não sei o que sou, nem para onde vou. E tudo isto me provoca uma náusea do superficial, do óbvio, do fácil - uma náusea existencial, digamos assim.
Acabou-se-me o cigarro e largo a beata no chão, mesmo à mal-educado. O céu começa a escurecer, e a massa turística dissipa-se: uns atravessam a ponte a pé, rumo à outra margem; outros sobem a avenida, na direcção oposta. Resto eu e um velho de roupa esfarrapada e de garrafa na mão. Ele vê-me e dirige-se a mim. Um cheiro nauseabundo a álcool e suor invade-me as narinas e obriga-me a contorcer a face. O velho não se deixa intimidar.
"Que fazes aqui sozinho, jovem?" - Pergunta-me, na sua voz bêbeda.
"Olhe, vim para aqui para pensar." - Respondo. O velho ri-se.
"Oh filho. Quando tinha a tua idade, também pensava muito! Depois olha... Cansei-me..." - E torna-se a rir. Ri-me com ele. Admirei a simplicidade embriagada do seu discurso. Por um momento, desejei ter a mente toldada como a dele: talvez disfarçasse a dor de pensar e o peso de sentir.
O velho balbuciou algumas frases que não compreendi - e, portanto, não respondi. Ele acabou por ir embora, rumo à ponte - mas não sem antes se voltar, gritando:
"Bebe vinho, que a vida é nada!".
Ao princípio, senti nesta frase uma espécie de Carpe Diem:
"Respira e saboreia o pôr-do-Sol, porque de olhos fechados não és nada."
"Observa e ouve o rio a correr entre as suas margens, porque num caixão já não o podes fazer!".
Contudo, quanto mais reflicto sobre as palavras do sábio alcoolizado, mais me apercebo do seu verdadeiro sentido: "a vida não é bela, mas perde-te nela". Julgo que este senhor se perdeu com o vinho (ou no vinho). Ri-me e pensei na garrafa de vinho do Porto que mantenho guardada num armário da sala. Imaginei um pequeno copo desse líquido quente e agradável, e a sensação de suavidade que o vinho me deixa ao descer pela garganta.
Dei por mim de olhos fechados; tinha parado de pensar. A metafísica já não era nada, a dor já não existia, a alegria podia ser relativizada. Tudo era, agora, absolutamente nada. E eu, que me considerava inteligente, culto, educado e estudioso, aprendi mais com um bêbedo numa tarde do que em anos de escola.
Levantei-me, enfrentei a noite de alma refeita e tornei para casa.



segunda-feira, 11 de abril de 2016

O Monstro

O barulho do metro a deslizar nos seus carris embala-me quase até adormecer.
Hoje, como em tantos dias, o sono pesa-me nos ombros - como um gigante feito de lágrimas e mármore; como um monstro noturno, que de dia carrego às costas. Ouço-o a ressonar: "rrrrooouuum". Um barulho penetrante, de ritmo imprevisível, que me assalta quando menos espero, quero ou preciso.
Ninguém mais ouve este som horroroso: apenas eu (fechada na minha redoma asfixiante, onde é difícil respirar). Para mascarar este monstro, disfarço-o de uma formosa princesa - de sorriso fácil, olhar ternurento e cabelos ao vento.
Nunca ninguém desconfiou.
Depois, ao chegar a casa, o monstro abre um olho - mas distrai-se com as tarefas domésticas que eu vou fazendo. Ele deita-se na mesa da cozinha, de queixo nas mãos e pernas a abanar, de curiosidade plena. E vai-se rindo; de mim, da casa, da vida, enfim. Do que lhe apetece, e do que não lhe apetece.
Quando finalmente posso encostar-me às cobertas da cama e deitar-me no silêncio, o monstro desperta por completo. Esbugalha os olhos, bate com os pés no chão e berra de dor - porque arrancou o disfarce, e este estava tão bem colado à pele que até doeu tirá-lo.
Ele berra-me ao ouvido, puxa-me os cabelos, arranha-me os braços, esmurra-me o ventre, pressiona-me o tórax, aperta-me as pernas - e não me deixa fechar os olhos. O silêncio e o escuro são o seu recreio - os limites de uma caixa de areia onde ele constrói pequenos medos, que deixa em cima das prateleiras do móvel e do tampo da secretária.
Este monstro senta-se em cima de mim quando adormeço e, quando acordo, cumprimenta-me com o seu melhor sorriso e grita. Grita muito! E depois adormece. É tão pesado que não consigo tirá-lo de cima de mim: tenho de o levar comigo. Ouço a sua respiração pesada e invejo-o: tanto ele descansa, e eu não o consegui fazer! O dia começa a boa (má!) hora, e há transportes para apanhar. Corro para a estação e entro na primeira carruagem do metro. Felizmente, o universo conspirou a meu favor e encontro um lugar onde me sentar.
Encosto a cabeça ao vidro.
E o barulho do metro a deslizar nos seus carris embala-me quase até adormecer.

quarta-feira, 9 de março de 2016

Quando for grande.

Quando for grande, quero construir uma casa contigo.
As bases já as temos, só é preciso fortalecer.
Um quarto, uma cozinha, uma sala...
Onde possamos partilhar um jardim a florescer!
Regá-lo todos os dias, podar as árvores quando tiver de ser,
Para que nunca as flores murchem, ou o jardim tenha de morrer.

Quando for grande, quero continuar a dar-te a mão
Olhar na mesma direcção
Pisar o mesmo chão.
Dois Mundos que se tocam num único sistema,
Dois actores que partilham o palco, numa única cena.
Improviso, sem encenação,
Ou didascálias de instrução...
Vou-te descobrindo, e deixo-me também despida,
Ao som do destino, ao sabor das ondas da vida...
Mas não quero cair abaixo de palco, derrotada
Interpretar o papel de destroçada
Maria Madalena irremediável,
Partida a meio e irreparável
Sem presente nem futuro
Perseguida por um passado, num urro...
grito de guerra e morte anunciada...

Acordo. Suada do pesadelo. Aterrorizada.
Como quem pode perder a luz do Sol a qualquer momento.
O amor deve ser isto... E ao expoente máximo do querer...

sexta-feira, 4 de março de 2016

Soda cáustica

Cáustica. Escrava.
Acho que sou cáustica. Corroída por dentro, corroendo o ambiente que me envolve. E tudo o que peço é um local seguro e aquele abraço que me acolhe... Apesar disso, caminho e durmo num percurso de corrosão e ferrugem. Ai, a deterioração. A desintegração.
Ai: as maravilhas da auto-comiseração.
Sou escrava do meu modo de viver e de sentir. Escrava do que o meu passado condiciona e o meu futuro condena. Uma bandeira de rendição ao sabor dos ventos alheios. Como é mesmo a palavra...? Impotente. Sim, é isso. Tão impotente como o pão que se desfaz em leite quente: sem hipótese nem força para impedir que o desfaçam em moles pedaços.
Assim me vejo: ao sabor do vento fustigante do Inverno - aquele que leva roupa do estendal para o meio da rua e para pátios desconhecidos; fraca, e sem competências para mais. E deixada assim. À mercê também da raiva, que vai crescendo como um bolinho delicado no forno. Sinto a adrenalina e a agressividade a borbulhar nas artérias e veias, arranhando-me as cordas vocais quando, finalmente, grito. E hoje, gritei. Como há meses que não fazia. Não posso dizer que me soube bem, mas não foi tão mau quanto julgara. Embora me tenha deixado o corpo em estado de paralisia...
O tempo corria, em largas passadas, e eu não conseguia acompanhá-lo.

(Um modo literário e exagerado de descrever o stress)

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Também tenho direito, não?

(Data original do texto: 21/01/16)

Hoje, cheguei a casa cansada. Doía-me a cabeça. Foi uma bênção deixar a mala cair no chão ainda antes de fechar a porta; contudo, o som estridente da porta a bater despertou-me para uma realidade que tenho andado a evitar ao máximo: o vazio.
Descansar a cabeça depois de dias de estudo frenético não resulta. Um emaranhado de ansiedades apodera-se de pedacinhos do meu corpo, cada um deles puxando em direções diferentes: "escreve!", "canta uma música!", "vai ler um livro!"... E o meu corpo, por sua vez, sentindo-se puxado e repuxado, só tem uma vontade: descansar um pouco nos braços dele. Mas os braços dele estão a doze mil quilómetros de distância. 
Deixei-me então vaguear, de olhar vazio, pelo interminável feed de notícias do facebook. Comer chocolate ao jantar soube-me bem, mas soube-me a pouco. Senti que, se pudesse, teria comido um pote inteirinho de Nutella... 
Passaram-se duas horas e nem sei bem o que estive a fazer. A rádio foi a minha companhia. Continuo com coisas para fazer, mas sem força de vontade para tal. Com esta sensação estúpida de que amanhã vou acordar simultaneamente atrapalhada e atarantada. Faz-me bem ter objetivos, um exame para o qual estudar, ocupar a cabeça com coisas úteis em vez de a preencher com coisas lamechas. 
Não sei. Por vezes, a minha vida parece-me um emaranhado de coisas que não faço por medo, aventuras que não chegam a ser aventuras, rodopios de zonas de conforto, e impotência ao ver o meu futuro profissional a afastar-se de mim de cada vez que  chego perto. Exatamente como o horizonte... Uma ilusão de ótica. O futuro é uma ilusão de ótica: quando pensas que o vês com clareza, o Mundo troca-te as voltas e os pontos de vista. E a nossa vida é isto: a integração de múltiplas perspetiva, até que a morte te priva de todos os pontos de vista possíveis para te dar a maior perspetiva que alguma vez poderias ter - o tudo e o nada, simultaneamente. 
Agora está a dar o remix da música "Sexual Healing". Sorrio, a pensar nele e na forma dele cantar aquela canção enquanto conduz. Posso jurar que ouço a voz dele e que, se olhar para a esquerda, vou vê-lo a dançar agarrado ao volante. Isto deve ser das dores de cabeça. Aliás, todo este texto deve ser das dores de cabeça. Já não me lembro de escrever assim, de forma tão honesta, ousada, apelando ao meu lado mais negro. Uma pessoa afunda-se tanto no quotidiano que se esquece do pequeno grande prazer que é conseguir desenhar palavras. E, convenhamos... É tão bom escrever. E também tenho direito, não?
Mas sim, futuro enquanto ilusão de ótica. E porque não? A nossa noção de futuro vai-se alterando enquanto crescemos... E nesta idade, dos vinte e poucos, tenho um pequeno grande futuro delineado, ali um pouco acima da linha do horizonte... O término do curso, o começo de uma vida com ele. Todos os dias trabalho para estes dois componentes do meu pequeno horizonte. Tudo o resto é-me estranho. Está desfocado, como se tivesse tirado os óculos... 
Pergunto-me muitas vezes o que vai ser de mim. O que vou fazer de mim. O que deveria estar a fazer de mim. Deveria estar a investir na escrita criativa? Na minha voz? Valerá a pena investir num futuro profissional claramente decadente? Mas não foi a Psicologia que me deu um propósito, uma razão, uma luz de compreensão do Mundo em que vivo? E não é isto o que sou - uma tola que sobe espirais de questionamento, não se satisfaz com mundanas respostas e almeja sempre a compreensão? E a Psicologia não me deu as ferramentas para ir mais além no meu questionamento e nas respostas que dou a mim mesma? Ou isto tudo é um caminho egoísta?

Por vezes, é tanta coisa em que estou dividida que sinto que quase me desintegro. É um pedacinho de mim para cada coisa...
Olhei para a esquerda, e senti-me sozinha. Tanto quanto me sinto cansada, e com dores de cabeça. Quero um abraço dele. Quero acordar amanhã, contente por ser sexta-feira e por poder estar com ele. Dói-me só de olhar para o calendário. Já assim o era quando o vi ir em Setembro, mas já não me lembrava da sensação. Acho que os tempos dele aqui fizeram todos os sentimentos maus desaparecer... É assim que se sabe que vale a pena.
E vale. Vale muito a pena. Como nunca. E todos os dias. Cada pedacinho de saudade, cada fôlego desesperado de uma crise de ansiedade, cada lágrima, cada nó que me aperta a garganta: vale a pena. Vale a pena, porque posso tocar-lhe quando ele cá está. Posso deslizar os meus dedos pela pele dele, pela barba dele. Beijar-lhe o nariz. Juntar a minha alma com a dele numa doce dança harmoniosa, através dos nossos lábios. Acariciar-lhe o cabelo.
Se não estivesse tão cansada, ter-me-ia desmanchado em lágrimas. De saudade, de auto-depreciação, de frustração. O corpo pede-me o descanso que a mente não consegue fornecer.

Uma hora depois,deito-me, quente; fecho os olhos com leveza, na expectativa de que este fim de semana seja melhor do que o último. Solto um desejo por entre um suspiro, segundos antes de o sono se apoderar de mim. Espero sonhar tranquila. Também tenho direito, não?

Assombração - Parte I

 'Não quero falar do assunto' Apesar de toda a confiança Tudo regressa numa palavra Adeus à segurança Como uma assombração se volta ...