domingo, 27 de julho de 2014

Discurso a uma alma - parte 2

Cheguei a tua casa há uns dias atrás, com a promessa de Sol, água do mar e ares do sul. Qual não foi o meu espanto quando me apercebi da normalidade e boa disposição da casa, tão diferente da aura mórbida de há um ano atrás.
Já não te via em cada corredor, já não imaginava o som da tua voz ou o ecoar das tuas passadas (como é que era, mesmo?); sentava-me no sofá, naquele que em tempos foi o teu lugar, sem quaisquer remorsos; dormia no mesmo local onde soltaste o teu último suspiro. Apenas falei de ti quando descobrimos lá na tua sala fotografias antigas - e me apercebi que partilhámos traços físicos.
Depois de uns quantos banhos de Sol e de uma noite de descanso, respirei fundo o odor da saudade. Saudade, essa palavra tão portuguesa que explica o vazio na alma e o nó no estômago. Acho que tinha saudades tuas. Julgo que as trouxe comigo para casa.
("Lutámos do lado dele. Uns mais perto, outros mais longe. Mas não importava a distância, pois as lágrimas têm o mesmo sal e a angústia tem o mesmo sabor amargo para todos.")
Entrei naquele que, agora, é o quarto da avó. Não te imagino lá. Talvez porque passaste os últimos tempos deitado noutra divisão da casa, sem conseguires apreciar a imensidão do oceano - onde te deixámos pela última vez. 
Também entrei e saí de tua casa várias vezes durante o dia; nem por uma vez julguei que fosses tu a abrir-me a porta. De uma forma estranha, o meu corpo comportou-se como se me tivesses dito que ias numa viagem à volta do Mundo e que só regressarias dali a algum tempo. Ter-me-ei adaptado à tua ausência? 
("Chorávamos por dentro, com o estômago a torcer-se de dores, mas mostrávamos-lhe um sorriso, passando a mão pela sua cara. “Vai ficar tudo bem”, dissemos, repetidas vezes. Se calhar, mais para nos convencermos a nós próprios do que para o incentivar a ele.")
Nas duas últimas noites que passei em tua casa, dormi no local onde partiste. Gosto de pensar que foi uma noite tranquila, mas custou-me a adormecer. Fitava o tecto escuro e pensava nas últimas palavras que te disse (e que ainda conseguiste ouvir); tentava recordar como eras antes de o cancro se alimentar de ti como um parasita - mas não fui capaz. 
Tenho medo de me esquecer. Receio de nunca mais conseguir recordar o toque das tuas mãos nas minhas, de tão poucas as vezes que as demos. Receio de não ser capaz de me lembrar do teu abraço, de frouxo que era. Mas penso que mais do que ter medo, acho que tenho saudades tuas. Julgo que as trouxe comigo para casa. 
("Embora longe, serás sempre nosso").

Discurso a uma alma - parte 1

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